Enquanto a vela arde junto com os blues deslizantes há qualquer coisa no ar da sala que não é fumo nem é blues. Não, não são acordes nem harmónicas a melancolia que o povoa, são memórias. Há vento e palavras longe da sala. Há cabelos negros e sorrisos, e as palavras têm fundo de mar roçando o penhasco. Há um olhar que não se confunde com nada, que é só um olhar. As palavras são estranhas, fugindo ao assunto de um beijo. Mas o beijo vem, não se pode fugir de uma brisa que passa. O copo de gin está meio, e dez lamúrias por gole não são nada. Nas sombras há mais memórias mas o olhar desvia-se. A vela treme com a respiração ofegante de se lembrar, de se lembrar de tudo ainda que copos se esvaziem. De se lembrar dos passos escuros no quarto de tanta ternura, de se lembrar do suor e do cheiro a incenso. Da dança dos corpos ao luar de uma janela aberta, e de nenhuma palavra rasgar essa paz de uma batalha. Um trago, o gin chega ao fim, nem a distância nem o tempo afastam os sorrisos, os olhares. Nem as palmadas nas costas, nem as noites acompanhadas levam para longe festas no cabelo e abraços. Um abraço de cabelos levados pelo vento, com o mar a varrer os pés. O horizonte de um sol descendo a ser a testemunha de palavras quase impossíveis. A mão segura o copo vazio como as tardes de ausência e o homem varrendo o chão gagueja outra dose… O Tejo em frente da cumplicidade da cabeça no colo, a fuga de tudo para tudo o que importa. A lucidez nas traseiras, e estrear vocábulos sem o medo falhar. Poemas criados em manhãs simples como estar no único lugar do mundo, o abraço.
A hora é tardia, com as cadeiras em cima das mesas e os cinzeiros vazios. O vinil arranha o último rasgo mas a música não chegou ao fim. Fim de tarde no lugar comum de um parque de enamorados, o baloiço carregando em ondas suaves as palavras de uma corte sem sentido, porque a vontade é de um beijo. Voltar para casa com o balançar de um olhar na memória, e a despedida do beijo corrida no comboio que arranca, destino marcado, como o beijo da manhã seguinte. O homem ao canto, lança a critica muda da hora. A vela extingue-se sobre si própria. Há uma noite fria, o telefonema da dor anunciada, o silêncio cúmplice de tudo o que já se sabe, de tudo o que se disse em lágrimas escondidas e adivinhadas no espelho. Palavras escritas em lugares secretos que revelam tudo, a crueldade de ser frio e pronunciar adeus, escondendo a dor, com voz firme de “tem de ser”, e quebrar a máscara no segundo final, articulando os sons óbvios e impossíveis do único sentido de respirar. Agarra o casaco enquanto se levanta, a melancolia no ar começa a assentar sobre o chão varrido, os acordes cessam por fim, com o disco bem arrumado no caixa. O copo descansa, meio cheio. Paga e sai sem murmurar uma desculpa. Puxa o colarinho contra si ao chegar à porta. Lá fora chove…
Barnabé Santiago 14/09/05 e 16/10/05
A hora é tardia, com as cadeiras em cima das mesas e os cinzeiros vazios. O vinil arranha o último rasgo mas a música não chegou ao fim. Fim de tarde no lugar comum de um parque de enamorados, o baloiço carregando em ondas suaves as palavras de uma corte sem sentido, porque a vontade é de um beijo. Voltar para casa com o balançar de um olhar na memória, e a despedida do beijo corrida no comboio que arranca, destino marcado, como o beijo da manhã seguinte. O homem ao canto, lança a critica muda da hora. A vela extingue-se sobre si própria. Há uma noite fria, o telefonema da dor anunciada, o silêncio cúmplice de tudo o que já se sabe, de tudo o que se disse em lágrimas escondidas e adivinhadas no espelho. Palavras escritas em lugares secretos que revelam tudo, a crueldade de ser frio e pronunciar adeus, escondendo a dor, com voz firme de “tem de ser”, e quebrar a máscara no segundo final, articulando os sons óbvios e impossíveis do único sentido de respirar. Agarra o casaco enquanto se levanta, a melancolia no ar começa a assentar sobre o chão varrido, os acordes cessam por fim, com o disco bem arrumado no caixa. O copo descansa, meio cheio. Paga e sai sem murmurar uma desculpa. Puxa o colarinho contra si ao chegar à porta. Lá fora chove…
Barnabé Santiago 14/09/05 e 16/10/05
4 Comments:
Pergunto a mim mesmo porque e' que n~ao me apetece escrever versos: "Porque e' que n~ao te apetece escrever versos?"
Sei la'... Ando contente. =)
"I miss the comfort of being sad." - Nirvana
Barbas,
A poesia da tua prosa vale mil versos. Falávamos de cartas de amor. Esta é uma das mais belas que li na minha vida. O amor, a saudade e a memória retratadas com a beleza de um blues. Por momentos senti que era eu que estava lá, só, a lembrar e a sonhar de copo na mão, mas era whisky velho :)
Por tu causa estive a ouvir "Dez lamurias por gole" e tem muito a ver com o meu estado de espírito actual.
A dor sempre me deu vontade de escrever poesia, mas como já deves ter visto, não nasci para escrever poemas e normalmente acabo por não os “postar”.
Nós humanos somos muito estranhos, pois está provado que o sofrimento é o maior motor criativo.
Continua contente é um óptimo caminho para a felicidade :)
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engraçado, é claro que estava a ouvir ornatos quando escrevi a segunda parte do texto (a primeira foi escrita num bar em que o "taberneiro" é gago...) mas nunca pensei: a)que se nota-se assim tanto; b) que alguem que conhecesse as letras do manel alguma vez leria este post...
sabes merial, ornatos foi o primeiro concerto que fui ver, quando tinha 12 anos, e sempre digo que foi o manel que me ensinou a amar, porque ta tudo lá, desde Cão! até "Bom dia" encontras tanta coisa, em que decerto´o sofrimento é um motor creativo. o importante é ter um sorriso na cara á mesma.. =)
p.s.: continuamos neste dilema; definitivamente gin... =)
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