sexta-feira, julho 29

Nem de propósito caramba. Faleceu esta noite uma das minhas tias-avós, aquela das intermináveis tardes movidas a chá e bolinhos. Oitenta e seis outonos e netos criados, isso sim é ter vivido. Não consigo ver injustiça na partida serena de seres sábios de tempo. Adeus tia Maria. Ficam para sempre as tardes de chá.
sempre “Adeus” demasiado cedo
e partir tão prematuro como viver.
trémulos deslizam os dedos
como o medo sobre os homens,
mas as palavras são pequenas,
e só abraços curam a dor
da realidade apática,
a entrar nos corpos
e a escorrer a consciência ácida
do Adeus.

não há música triste o suficiente
para a tua partida,
e a tua ausência
é um pássaro lento
nos céus de um sol que se põe,
uma dor que vibra
nos acordes dos teus silêncios,
que são agora tudo o que serias,
não fosse tudo o que és
tudo o que escreveste
nos nossos corações,
com um sorriso sempre aberto
e um olhar cristalino da tua Liberdade.

há um vazio na luz dos dias
mas não nos nossos corações,
onde os teus momentos permanecem
mantendo-nos de pé
com a memória de ti.
e quando seguir em frente
perde o sentido de outrora,
de quando o mundo não era
um lugar de sombras,
essa memória
e a vontade de honrá-la
têm de ser a força
para avançar
com olhos em lágrimas de
Adeus.
30-05-2005
Há exactamente um ano atrás, sensivelmente por esta hora, perdi dois amigos para a sombra da morte, e vi uma amiga acabar numa cadeira de rodas. Já não há hoje revolta, a única revolta é não ter tido a coragem de escrever na ocasião, o que tive de escrever noutra perda. Mas 17 anos não é nada, nada. Talvez uma eternidade não seja nada, e seja tudo o que aspiramos ter. Esperança? Memória ao menos, fitas brancas num pulso marcado, porque não há sol que penetre a dor das vossas ausencias. Os meus mortos, Luis, Daniel, Marco, Patricia; são mais do que nomes no papel e uma fita branca no pulso, são os momentos que eram eles, são a memória que se esvai mas que fica sempre e se reforça. Nem sei sequer se é a saudade, é só o não estarem por cá, onde me habituei a ver-vos. Quantas vezes me vais mais levar a andar de mota tio? Quantas vezes mais estaremos juntos no berçário, as minhas primeiras memórias Daniel? Qual será próxima discussão interminável sobre Magic ou BMX Marco? Quando saborearei o teu sorriso sem mácula, e me mostrarás os desenhos da tua paixão Patrícia?
Eu vos respondo, a vós "mortos dificeis de morrer dentro de nós", sempre que houver lembrança, e um cheiro familiar ou um lugar visto, vos trouxerem de novo á nossa presença, e vos fizerem vivos como sempre foram nos corações de quem fica.
Escrevi o post seguinte quando a patricia morreu hà cerca de dois meses, mas foi com todos vocês num pensamento nunca curto que a caneta deslizou...

quinta-feira, julho 28

como é que te posso odiar?
se te amo, como te amei
desde que entraste na minha vida.
agora com a noção de que eu e tu
jamais seremos nós,
porque te odeio,
porque é por não te tornares
aquilo que és realmente
(que tens de ser,
que outra maneira?!)
que eu e tu jamais seremos nós,
que tu és tu,
a mulher que eu amo,
e eu sou eu,
o homem que tu criaste
quando te passei a odiar
e o que são os outros
que me tocaram
e te tocaram
senão uma ternura
ás vezes grande
e um engano
que não chega a turvar a vista,
se o teu sabor ainda é meu
e o teu cheiro não sai do meu corpo.
o que são beijos e carícias
ao pé de olhares e palavras por dizer?
odeio-te.
e só sei que te odeio
porqueés como aquela chaga
que não fecha,
e a cada topada lateja mais,
e odeio-te
por saber que a cura para essa chaga
és tu.
e amo-te,
como quem ama um raptor,
num fascínio delicado e bruto
de um sorriso e uma máscara.

Barnabé Santiago
26/06/2005

quarta-feira, julho 27

uma palavra no papel,
uma palavra simples como
Amor, ou
Sempre, ou
Nunca, e uma
impossibilidade tão absoluta
quando a inexistência desta.
olha-me tu,
olha-me um olhar simples,
e saberei o sempre e o nunca e o Amor,
e sentirei que o nada nada é
e que um olhar,
um olhar simples,
se for o teu,
é o Absoluto,
e a chuva na cara
e a noite escura.
saberei o sol na distância impossível,
saberei o impossível como um raio de sol.
tenta dizer-me de novo,
numa palavra simples,
tudo o que não sabes
dentro de uma flor,
e contar-te-ei as mentiras
de um dia sem luz,
e as maneiras de saberes
o que nunca foi dito.
confessarei que te amei
sem saber o sentido
nem a hora negra da tua ausência.
admitirei que o sentido
sempre foi ter-te perto
e a obra afastar-te
para onde não dói.
gritarei a loucura
dos acasos no caminho,
numa estrada sempre longe
do destino de nós.
mas a chaga do teu Nunca,
que farei com essa sombra
na hora luminosa de um sempre?
que farei com uma incerteza
“na véspera de não partir nunca”?
respiro a tragédia do tempo a passar,
e abraço sem forças
a mudança de um mundo velho demais,
e a sombra de te olhar depois do nada.
“quem es tu, de novo?”
para voar por ti
ainda que as minhas asas sejam a mentira?
se alguém se importa com o nascer-do-sol
numa manhã de ressaca
de um licor sem nome
que se importe
com o pôr-do-sol em mim!
parto hoje
o destino és tu,
esse tu fora de mim que desconheço
como a mim mesmo.
e o caminho são palavras,
puras como imagens de brincar,
de te lançar as verdades
que nem sei
mas que descubro
nas curvas do teu corpo,
quando as nossas mãos se tocam
e o mundo acaba
no absoluto do teu olhar.

Heatrow Airport
23/07/2005
Barnabé Santiago

Base:
“Quem és tu, de novo” - Jorge Palma
Quem És Tu, de Novo
Quando a janela se fecha e se transforma num ovo
Ou se desfaz em estilhaços de céu azul e magenta
E o meu olhar tem razões que o coração não frequenta
Por favor diz-me quem és tu, de novo?

Quando o teu cheiro me leva às esquinas do vislumbre
E toda a verdade em ti é coisa incerta e tão vasta
Quem sou eu para negar que a tua presença me arrasta?
Quem és tu, na imensidão do deslumbre?

As redes são passageiras, as arquitecturas da fuga
De toda a água que corre, de todo o vento que passa
Quando uma teia se rasga ergo à lua a minha taça
E vejo nascer no espelho mais uma ruga

Quando o tecto se escancara e se confunde com a lua
A apontar-me o caminho melhor do que qualquer estrela
Ninguém me faz duvidar que foste sempre a mais bela
Por favor, diz-me que és alguém, de novo?

Quando a janela se fecha e se transforma num ovo
Ou se desfaz em estilhaços de céu azul e magenta
E o meu olhar tem razões que o coração não frequenta
Por favor diz-me quem és tu, de novo?

Jorge Palma - "Jorge Palma"