Chapéus Peludos ou Moicanos Azuis? II
Enfim, as ruas não são estranhas e os passos inconscientes de um livro na mão encontram passeio onde as lajes já não são estrangeiras. Precisar de Patrice pela manhã “Everyday is good because of being alive…”, porque as horas lá fora são sempre as mesmas, um céu cinzento de uma madrugada que parece não acabar.
Gastei tanto dinheiro a mais. È tão fácil mandar dinheiro fora sem pensar…
Hambúrguer de peru ao almoço, massa ao jantar, não saber do futebol, não saber da política, combinar copos, noites, saídas, festas. Ressacas difíceis, com o tempo a ajudar a letargia de não ter água no corpo. Caminhar para a cidade, caminhar de volta, repetir… Quinze quilómetros nas pernas cansadas de umas botas de montanha.
(Sempre soube que a minha mãe me ama, mas hoje sei-o com mais força. Eu não queria comprar botas e ela obrigou-me. Hoje tenho os pés secos, e sei que amo a minha mãe. E mais, a minha mãe, porque me ama, mandou-me a melhor faca de cozinha que tem, e quando estou a cortar o queijo para o meu hambúrguer ou para a minha massa, eu sei com muita força que a minha mãe me ama, e lembro-me de quando tudo o que eu tinha de fazer era pôr a mesa.).
O tempo no calendário a ser uma ficção ridícula de o tempo passar em pessoas novas e em desilusões curtas. De olhares, estamos todos sós, e nomes cuspidos sem intenção de mais que o conforto de umas palavras. O calendário a impedir-me de chamar ao meu quarto lar, mas de o sentir fundo, e de uma cidade nova ser já muito minha nas deambulações das saudades de casa.
“Slow down everyone you’re moving too fast…” Noites… Beber como nunca vi, e dançar como se a noite fosse acabar a seguir. Acaba. Sair para o pub á hora de jantar, todos bêbados pela hora de sair, vir para casa à hora da discoteca. Ser o único menor, e o único a não mostrar ID…Sorriso na cara, falta pouco. Sempre mais uma casa onde ir, sempre mais uma cerveja para beber. Uma residência com três mil alunos. Mini-saias e um frio de rachar. Sair de casaco nas primeiras noite, não querer ser freak, sair de calções ontem… “Move like a jelly-fish/Rhythm is nothing/You go with the flow/You don’t stop”. Socialismo no seu expoente, aqui só não factura quem não quer. Tão bom sentir-me estrangeiro…
Pessoas diferentes, grupos diferentes, incompatíveis. Sair com uns sair com outros, sair com gregos e com troianos (galeses no caso), com bêbados e com certinhos, com pop-star girls e com rebeldes sem causa. Ter de tudo e não ter obrigação de escolher. Gosto de companhia, e gosto da maior parte das partes de mim.
Não ter net.
Papéis, horários, bancos, telefones, cartões. Palavras repetidas, que merda de sotaque. Ser o português que fala americano e usa expressões australianas (o prazer de no pais do “cheers” responder “no worries”).
O adiar de lavar a roupa (vai ser uma estreia…), e a última muda no corpo. Livros de uma libra devorados nas tardes cinzentas, Marquez, Borges, Chomsky, Homero, Levi… Livros por comprar, o dinheiro já curto (150£ por 15 quilos de tudo o que tenho de saber…).
Sessão de apresentação, um teatro, um teatro mesmo, alunos dos cursos de biociências, trezentos e cinquenta a cobrir o veludo vermelho do anfiteatro. As pernas a não caberem, e uma capa onde escrever. A tutora pede desculpa, e eu considero o privilégio de ter aulas no Royal Museum of Wales (boa colecção de impressionistas, um par de manets, um trio de monets, mais dois ou três van goghs…). De pé?, se tiver de ser. Seis horas por semana ali: resolução de problemas, biologia celular e bioquímica. Toda a gente a fazer confusão com as minhas opções, então um bioquímico não pode querer fisiologia? Horas a mais? Não, não sou um puto mimado inglês, trabalho desde os doze obrigado…
Entrar na universidade às duas da manhã para responder a mails e sentir aquele arrepio de paredes velhas, de pessoas e vidas marcadas nos degraus pisados (Stora Idalina, e os degraus que Camões pisou, o calafrio de passar a porta férrea, como seria ter ficado em Coimbra, o João e a paixão pelas ideias…). Passar pelos laboratórios de doutoramento com um sonho nos olhos. Comprar a minha bata nova, ter uma lapela com o nome do meio como apelido. Passar pelos mimados de medicina, têm a papa toda feita, festas e clubes só deles, são os últimos a chegar a casa (as festas mais selvagens!) e os primeiros a sair (aulas das nove ás cinco). Uma ponta de ciúme, e todo o orgulho de tentar salvar um mundo e não uma vida.
Sociedade de xadrez, sociedade biomédica, sociedade de jazz, sociedade de musica alternativa, clube de surf (pranchas e fato de borla! Uma libra por cada ida á água). Tardes a ver o bailado ancestral do râguebi, a cumplicidade sem idade da testoesterona, a civilização da brutalidade. Quero aprender a ver râguebi…
As aulas começam amanhã, entre as caras prestes a serem conhecidas, e acho que estou feliz. Telefonemas de casa, e as lágrimas que a minha mãe não chora ao auscultador. As saudades estão lá no fundo mas estão. É bom ter a minha vida nas mãos, e nunca tive tanto medo, não a quero deixar cair.